O JUÍZO DO DIREITO

O JUÍZO DO DIREITO / Júlio Paiva


O homem tomou leve a gravata de cor vinho com uma estamparia clássica para a representação do rito, um nó, lento, tranquilo, que lhe apertava o pescoço por conta do sacrifício do ofício, é entrar no carro e dividir a conduta com outros motoristas na avenida que sem juízo ocupavam seu espaço sem ter seus títulos reconhecidos e devidamente emoldurados nas paredes dos seus ofícios, reclamava, de que medalha ou honraria ostenta esse Opala, último tipo, é verdade, mas não dá um cavalo de pau, como faz o meu Dodge Dart marrom no asfalto desta avenida, dividida em mais de cem motoristas e nada anda por culpa desta política torta, e ainda insisto: veja, aquele fusca preto não é um alemão negro, ora bolas, se todo fusca é alemão, cadê o branco, por que acreditam que aquele preto dirigi como um ser humano, e ainda querem que eu acredite que aquela perua, colorida como um artista de rua, cheia de verduras cruas, trabalha pela pátria, é claro que não, cadê a placa, eu anoto, cadê, não tem, que dirá o gosto da elegância cinza de uma calça de cambraia, vai ver dirige de chinelos e camiseta regata, mostrando suas vergonhas, eu olho para a empregada e ela faz o sinal da cruz indignada e completa: tem razão doutor, assim como toda brasília deveria ser verde e amarela, e eu digo: pois é, concordo Maria, que não responde ocupada com a bíblia,  mas deixa, deixa comigo, eu passo com meu carro por eles e jogo meu cigarro, Hollywoodiano, pela janela como protesto de cidadão latino-americano, e seja o semáforo aberto ou fechado, eu passo, não vou ficar paralelo com aquela perua esperando o sinal amarelo me exigindo que  divida a atenção com quem eu sequer conheço, imagine, uma perua e um fusca alemão da cor de um preto, e ainda dirigido por um negro e comenta minha empregada: perigoso até, e ela faz mais uma vez o sinal da cruz, preocupada se o motorista vizinho tem seu deus no coração, e eu digo, Maria, ele não tem não, essa classe de pessoa aí, não tem deus, nem o seu, nem o meu, nem tem religião; quer saber, eu vou avançar sobre a faixa por que paralelo com essa perua velha e esse fusca, eu não fico não, o Brasil tem pressa e eu não tenho tempo para essas bobagens humanistas de que somos iguais em todas as regras, não somos, e por isso avancei, sou doutor de carteira e pistolão, é, sou indicado, tenho até carta de recomendação, um favor que meu avô fez para um alto funcionário que me deu privilégios acima dos direitos comuns, você não entenderia, eu sei que não, foi muito trabalho Maria, muito sacrifício para chegar aonde eu cheguei, mas eu consegui, sou juiz, juiz do direito, faço juízo do que é direito ou errado,  portanto eu posso, não preciso respeitar esta cancela que é este semáforo, eu não sou um refugiado, ele nem vê quem é o motorista que está dentro do carro, um semáforo não será eficiente nunca para um desenvolvimento de uma sociedade progressista, nunca,  ele não vê as famílias, ele não vê gente, ele não vê que tipo de motorista dirige o carro, mas deveria,  acha que suas classe é a mesma que a minha, não é não, Maria, pois você limpa, e eu dirijo, ainda que esteja do meu lado no banco deste carro, sou eu que dirijo, pois sou um homem bom, acelero o ronco do meu carro e grito como aviso, sobe pedestre para a calçada que lá é o seu lugar, ainda que você atravesse na faixa,  rua é lugar de carro, ora bolas, e não me venham com bicicletas, por que aí já é atraso de mais, e não é que o sinal amarelo do semáforo dá defeito e pisca repetidamente por mais de um minuto e meio, estou impaciente, e o motorista da perua colorida que está do lado do meu Doge Dart, desceu do seu carro e de shortinho curto e camiseta apertada: dá uma bananada para o farol que não se desarma, banana pra você, diz o invertido caboclo verdureiro, louro, de cabelo crespo, não é doutor, quem pode com esta tecnologia, atrasa minha viagem e eu vou perder toda a minha mercadoria, reclamou o caboclo para mim, o doutor, e ainda pediu conselho, doutor, eu deveria processar o estado, não acha, deveria multá-lo por perdas e danos por conta deste semáforo mal regulado, repetia o caboclo na minha janela de doutor, que eu constrangido com o cidadão desconhecido. evitava olhar para aquele shorts azul tão pequeno de volume gigantesco que quase dava para ver os púbicos louros daquele sujeito, que sem constrangimento coçava sua genitália enquanto protestava, e eu, o doutor, fecho minha janela e acelero, pensando em voz alta, no volume, pensando no volume, e Maria: doutor o volume do rádio eu já abaixei, de que volume o senhor está falando, e continuo no volante quase em transe, o volume, o volume, e eu, o doutor, ainda pensando no volume daquele caboclo, bem no meio de suas pernas, mas eu passo o sinal amarelo, o sinal verde, o sinal vermelho e Maria interrompe mais uma vez: senhor, o senhor não acha que está correndo muito, e eu respondo, sim, respondo que sim, olhando para ela, o Brasil tem pressa, eu sou um homem de estado e se eu corro e furo as cores do semáforo, Maria, é por que estou atrasado, mas quando outro carro seguindo o mesmo caminho no sentido contrário, me bati de frente, causando um acidente, atrapalhando o fluxo do direito democrático, eu e Maria morremos amassados, enquanto aquele motorista da perua que no farol foi deixado reclamando de lado, de longe tem dó do estrago no meu Doge Dart, e se pelo menos fossem iguais, da mesma marca, eu dizia, seria um acidente igualitário, e assim o caboclo resolveu avisar o policial do acidente, mas o policial avisado pensa se deveria multar aquele fato, por que eu era um doutor de muitos títulos, um homem nomeado, tinha até gravata, então, pensou, pensou e o guarda multou a negra empregada que estava morta, toda amassada, mal arrumada, no banco do lado.  

             

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