Na mira do português / Júlio Paiva 2017



Maldita tempestade que sopra nos meus cabelos, estes fios amarelados já me faz inimigo desta ventania, que me corta e me impede, que me atrasa, que me cala, mal respiro, e que homem mantém a sanidade neste redemoinho, mas ainda sinto, a areia, na solidão rala, eu grito, olha que eu ainda grito, pela minha barriga, cheia de urina, vou fazer uma vereda em pleno sertão, escorre água dourada e me faça rico bem aqui neste mandacaru abusado, eu mijo, mas olha só, quem é você, o que fazes aí de boca aberta e língua, negrinho verde e folgado, e não tente matar sua sede, o pinto é meu, e se queres beber saia deste monte de areia amontoada, sambaqui, escondido, fugido, esconderijo de chibata, não fala, feche essa matraca, graminhãozinho enterrado, o que és tu, despacho, desde quando nego-velho faz macumba aqui neste deserto sem pátria, fala! Não fala nada, cortaram a sua língua, foi castigo de sinhazinha, fala! O que é isso, que tu me das, uma pepita, é ouro, ou foi tua saliva que petrificou minha urina, é pedra, dourada, é roubada, cabe na minha palma, dá para fechar os dedos, os dedos da mão e guardá-la, no bolso, meu bom menino, conheço um moleque de bem, já logo no primeiro encontro, bom moço, negrinho corajoso, quer mais água, toma, mata que a sede mata, bom, mais, assim, melhor ainda, que língua, rápida, beba e depois fala, aonde mais tem essa pedra dourada, tem mais aí, guardada, conta, pode contar, não sabe falar, tudo bem eu te ensino, um substantivo, abstrato, senão, do jeito que o negro é folgado, logo vai querer ser sujeito, depois de tão pobre e pedinte, vai me pedir predicados, e assim se torna uma frase de efeito, não tem jeito, ainda que de tão preso e parado, não posso te dar um nome, vira nome próprio é muito perigoso. Imagine, um negro sujeito, depois verbo, predicado e já logo vira oração, e a igreja se pinta de preta e o neguinho vai querer dar extrema-unção, não, não, não é apropriado, arriscado, definitivamente não, mas, caso você me dê uma outra pedra dessa eu te dou um coração, coração de José, João, Moisés, Abraão, sim, te dou um sobrenome, de branco, alforriado e com título, eu te dou até adjetivo, negro lindo, então, pode se mexer e fazer tua oração, lá, aqui, acolá, aonde está, o ouro, diga que eu te ensino como se usa a língua, eu até te alfabetizo, aí sim, e se me contares o mapa da mina, mereces que te dê um um sentido, e que não será auxiliar, poderá ser transitivo direto sem pedir licença para transitar, logo te faço objeto, direto eu te ponho para trabalhar, vai garimpar para mim, feliz, já pode falar, tome, é rapadura, é doce, e te dou também uma pemba, agora risque, seu ponto, na sua língua, um poema, no sertão, chão de areia, pemba, cante seu ponto que ele vem: " São três tufos de cabelos, dois pra lá, dois pra cá, minha solidão parece forró de tempestade, impossível pentear, tome, eu também te dou um caco de espelho, mas por inteiro não vai poder se olhar, sabes português que você é feio, então mostre a língua pro teu lar, santo ofício é tua fala se fostes capaz de cantar, uma missa mágica, abra a mão para tuas aspas, e vejo a reticências no olhar ". Você canta, negro, ué, então por que não fala, aprendeu rápido ser escravo e não sabe escrever a palavra, diga tua religião, melhor, faça uma mágica, meio cigana, que tapa nossa solidão, já que ser sozinho já virou religião, eu quero as pernas de uma mulher, quero uma saia, pra bater no coração, um vinho e um pão. " Nesta solidão do sertão, o que eu conheço é de orelhada, eu só canto iorubá, mas conheço as notas de branco: dó, ré, mi, sol, fá, lá da áfrica, foi se deitar, no encontro da terra, o Brasil é além do mar, hiato, ditongo, encontro da vogal , encontro consonantal eu te dou um hífen e te separo, mas também te uno, como branco crespo, amarelo grisalho, albino, fez um filho, mas insiste em enterrá-lo". Claro, também sou subordinado, sou albino, a monarquia que carrego é regência e não aceita mistura no mistério, sou correto, e na norma gramatical brasileira não posso casar com uma negra, muito menos reconhecer um filho mulato, jamais aprenderia o que é correto, o que é gramático. " Esquisito juizado, aquele (s) tem som de /z/, mas também o pê pode ser mudo mulato e o xis tem som de quê, cada caso é um caso, não tem bom juízo esse seu gramático ". É que é facultativo o juízo ajuizado, melhor decorar as regras do que tentar aprender a linguagem escrita do que é falado. " Por isso canto e não falo enquanto trabalho " Então ora que chegou a tua hora e vou te dar sua sentença, generosa, em vez de morrer pela prosa, paga com tua vista, paga a vista que cego te farei livre. " Do que adianta um homem livre que não pode enxergar, vou depender sempre de alguém para me orientar, não poderei me desviar dos espinhos da Jurema e nem terei certeza de que com Iracema eu posso me deitar," Então fiques de pé e pague com tua nobreza, é virtuosa a hermenêutica, relativiza se você sabe interpretar, mas não conheces o Latim e nem o sofista Grego, não tem amigos neste governo, então, aconselho, faça tua oração que já está no teu momento. " Então leia minha sentença que eu ouço de peito aberto, apesar de solitário eu sou corajoso amigo de Hefesto e tenho sim amigos neste governo, por que sei ser sincrético, sou rei Ogum orixá, saio do buraco e canto para o anjo apostólico, romano, santo, São Jorge guerreiro, converto tua reza em ponto de terreiro, sai da terra um anjo caído, olha a asa que voa no teu documento, pousa, sobre a frase do meu destino, um risco, inclinado para trás, no céu gramático do teu paraíso, bem em cima do a, virou fusão, agora é crase, eu pago à vista com essa pepita". E que diferença faz?! "Uai, não conheces tua língua, branco, nesta frase tem crase, paguei e posso caminhar, livre, vejo, enxergo, pois quem conhece a língua tem mais chance de se libertar" Negro, esperto, pra onde vai? "Para bem longe de ti, quem compreende e não decora, tem mais chance de ir embora, jamais estarei preso, por que amo o livro, e da solidão não lamento, por que eu amo de verdade o conhecimento."  Então, vá, que eu da tua ausência aproveito e me deito nesta cova, não demora, eu também aprendo a verdade da tua língua: o iorubá.

"Mas olha só, que o português meio branco, meio negro, meio latino, pensa que é orixá, quer virar Ogum no buraco e aprender a magia vudu iorubá" Que jeito, é a política de preto, "Que esperto, branco azedo, leite passado, vai começar a dizer que Exu é o diabo" Sei que não é, pois Exu é apenas mensageiro, como hermes na política dos deuses gregos, "Bem, se sabes, diga pra mim, qual é a mensagem?" Que a verdadeira língua não é a tua e nem a minha, "E qual é a verdadeira língua, a tua política?" Ué, não viu o decreto, que decretou a igualdade pela ortografia, "Que bom que não retiraram a crase ou teria pago com minhas vistas" Pois é, e foi de cima para baixo e não de baixo para cima,"Tens razão, uma nova ortografia é a língua da política" Então, e se somos iguais por decreto, pela língua daremos as mãos?  "Não"  E por que não? "Por que antes da língua tem o homem que cobiça a língua feminina" Tudo bem, você preferiria uma língua feminina!  "Iansã rainha!" Nem me fale dessa tempestade! "Calma, português, Santa Bárbara eu diria" É guerra que ninguém conserta essa linguagem primitiva "Guerra e religião" Religião é linguagem de sinais que ainda separa o claro do negro carvão. "O sul do branco sempre fora separatista" Mas isso é mais linguagem do sudoeste paulista. 'Mentira, e a poesia do nordeste, pelo sotaque, não se separa não?" Bem, e se você me der o mapa da Mina  eu até proclamo pela pronúncia miúda a independência do sul de Minas. "Português, você quer ser o dono de uma vila rica." Negro, não é essa minha intenção, mas por favor me diga qual é o mapa da mina, onde foi que você encontrou essa pepita? "Eu não sei, quando vi encontrei na tua urina, fez um lago, bem aqui no meu buraco, escorreu e já virou riacho, agora garimpa." Mas é você o escravo, então me diga, que com o ouro explorado eu pago a tua alforria.  "Português eu sou negro, mas não sou escravo, porém por simpatia eu conto para me livrar da tua companhia onde fica o tal riacho e você garimpa: fica lá" Lá aonde? "Lá, no reino de minha mãe orixá" Que orixá? "Oxum!" Então peça para ela e vá buscar. "Português o reino não é meu e sem pedir licença não posso tirar nada do lugar" Então deixa que eu peço. "Português, você não é do candomblé e está querendo roubar" Eu tenho o cabelo amarelo e aceito Oxum como minha mãe orixá, caso eu pegue alguma coisa ela nem vai notar. "Mas Português, cuidado, não olhe para o espelho de minha mãe Oxum no riacho dourado" Negro, tolo, eu olho para onde eu quiser, eu não sou subordinado. "Melhor eu te dar um travessão para marcar um diálogo" -Diálogo, com esse traço eu quero é mais cutucar aquele rio inexplorado. - Então vá! Mas tente ao menos conversar. - Com esse traço posso separar o que é meu do que já está coroado. - Nem quer marcar a mudança de interlocução entre o certo e o errado? - A urina é minha, então sou dono deste rio claro. -É teimoso, por que não monta com minha mãe Oxum um diálogo com este traço? - Não! -Tudo bem, quem avisa amigo é, então faça o que você quiser. - Ahhh, eu me vejo, como sou lindo diante deste espelho. - Deus, eu avisei, não olhe para o reflexo! -Eu me vejo e estou diante de mim mesmo! -Português... português... português, olha o que você fez, virou escultura de narciso e fez de mim um eco, português, português, português...

-Toda linguagem é imagem de minha semelhança. - Oh, deus, português, pensas que és um pintor holandês, pois se toda imagem fosse só tua paisagem, não existiria o tupi. - Fui eu que inventei a língua Tupi-guarani! - E o xaxado e o xixi! - Epuã jevy xonaro´i, jajeroy nhanderu oxa agwã / levantem-se guardiões e guardiãs para agradecer e dançar na linguagem da sagrada umbanda! - Que que é, eu me levanto por que é você quem manda, mais um pouco vai dizer que controla os caboclos de aruanda. - Quem controla é quem canta! Machadinha do cabo de ouro, é de ouro, é de ouro, machadinha do cabo de ouro, é de ouro, é de ouro, machadinha que corta a mironga é o machado de xangô. - Português, eu estou tremendo, vibrando, acho que estou recebendo... -Machadinha do cabo de ouro, é de ouro, é de ouro, machadinha que corta a mironga é o machado de Xangô! - Português, português, incorporei! Iêeeeee, iá, iá, iá, exe fio, que tempo tem na terra? - Salve caboclo, a lua é grande, e não obstante, qual o nome de voz micê? - Caboclo sete Cruz. - Sete Cruz, de quê, desculpe caboclo, mas isso é nome de Exú de umbanda, eu queria uma consulta com um caboclo de Aruanda. - Exe fio aqui é o que se chama Caboclo Cruz e Souza de Aruanda. -Mas pai, Cruz e Souza não era poeta? -Era, mas poesia também cura isso, fio, não dói aqui. - Dói aqui, dói ali, dói até para fazer xixi. - Voz tem problema de rim. - Rim, então essa pedra... - Não é de ouro. - Que canalha, esse neguinho é mentiroso! - Esse português toma um chá de quebra-pedra que a linguagem da escura mata é a poesia mais correta... - Caboclo, caboclo, espera... - Onde estou, recebi o santo? - Recebeu e entregou o que era teu. - E o que era meu? - A pedra! - Posso ficar com ela? - Pode, e vê se enfia ela na merda. - Eu sabia que você iria ficar chateado, por isso menti, pobre português adoentado. - Ora, eu que tenho dó de você. - E por quê? - Por que eu te dei a liberdade. - Português, pensa que sou um garçom, do francês, menino, que a tua língua adaptou por que te servia, a liberdade eu já tinha, e eu também dei para ti, aí sim, eu te servi, com a minha poesia. - Poesia, a verdade do poema era a doença, não era uma pepita e agora que sei a verdade, não existe mais motivo para essa linguagem. - E o que o senhor vai fazer? -Nada, não há nada o que fazer. - No futuro, talvez, escrever. - Para quê? - Alguém vai querer ler. - Quem, você? - Eu gostaria de saber como sabes escrever. - Para quê, logo as palavras serão abreviadas. - E por quê? - Por que ninguém tem mais o que dizer. - Ora, português, tem eu e você. - Ora você sabe que eu estou muito doente e um dia nós iremos morrer, eu e você. - Mas é por isso que se escreve, a alma fica presa na palavra. - E como sabes que é justa a  palavra dada? - Ora, eu não sei. - E nem vai saber, por que não há nada antes da palavra. - Mas ainda assim é justo escrever. - Só se for a liberdade. - A verdade da liberdade da linguagem? - É, qual é? - Eu não sei. -  Então não há liberdade para escrever. - Tudo bem, o que as pessoas faziam antes de ler e escrever? - Não sei, dormiam. - Então vamos dormir para saber. - Mas aí a gente sonha! - É isso, sonhar com símbolos para escrever!

-Símbolos da geometria como um triângulo sagrado - Disse bem, português, o grego de um triângulo equilátero - Negro, essa geometria é o grego de um triângulo equivocado - Equilátero é a igualdade dos lados, esse prefixo não significa lados equivocados. - Então, negro letrado, eu prefiro um quadrado, tem a linguagem da igualdade dos quatro lados. - Então eu prefiro o círculo, português, esse sim será igual para todos os lados. - Ora, negro, um círculo é só um buraco e ainda assim, preto, esse buraco não te daria a verdade da liberdade. - Tens razão e muito menos da sua linguagem. - Então não há mesmo nada o que fazer - Há sim, fugir, ou talvez permanecer? - Ou talvez, permanecer e inverter o espelho. - Inverter o espelho para quê? - Para saber a verdade da liberdade, a verdade da linguagem. -Não tem jeito, português, liberdade pela língua estamos presos. - Eu inverto. - Não faça isso português, vai ver tudo por outro lado. - É isso mesmo que eu quero, agora eu sei! - Você sabe, sabe o quê? - Eu sei, finalmente  a verdade da linguagem. - E qual é a verdade da linguagem? - Tac- tic - tac - tic. - Um relógio, deixa que eu inverto: tic-tac-tic-tac. - Negro, é meu o espelho: tac-tic-tac-tic... - Não está correto, é tic-tac. - É tac-tic-tac-tic - Tic-tac-tic-tac... - Tac-tic-tac-tic - É essa a verdade uma figura de linguagem: o tempo! - Mas estamos felizes ou estamos presos. -Como tu já dissestes com o passar do tempo, morreremos. - Bem se é assim, que jeito, eu me deito. - Deitaremos...

-Para sempre juntos:-tic-tac -Tac-tic -Para sempre separados, tic-tac -Tac-tic -No final venceu a linguagem, tic-tac -Tac-tic  -No final venceu o diálogo, tic-tac -Tac-tic Não tenho certeza-Tic-tac -Tac-tic -Mas, eu acho -Tic-tac - Tac-tic - tic-Tac...

-Português, por que sinto que com o tempo me separo? - Por que a língua separa qualquer sílaba da palavra. - Mas, português, eu ao menos ainda sinto que somos uma palavra: amor. - Engano seu, baianinho de óculos, você é apenas uma cor. - Que preconceito, eu já me sinto um sujeito, e lhe tenho caridade. - Caridade, o que você tem é cuidado, ainda é sujeito abstrato. - Sou concreto, tenho massa, e o logos da construção da razão e de minha palavra. - E qual é a sua palavra? - Justiça. - Justiça, nem o registro de um gramático impede o sol do sertão de evaporar o teu romantismo neste direito latino. - É verdade o sol do sertão é impiedoso, mas ainda digo, libertas que/a seras tamen. - Liberdade ainda que tardia não será justo, é atraso, frase de efeito num pano branco que um dia fora escrito, eu me ergo e tenho dito, Benedito. - Aonde vais? - Dançar, dançar para Oxalá. - Sem a lira da poesia eu não tenho como tocar para você dançar. - Não tenho tempo, com a seta do ponteiro na planta do pé, planto o compasso da língua neste sertão de seca poesia e te dou a verdade da língua! - Eu não quero a verdade da tua língua latina. - Quer, por isso pensou em justiça. - Eu não quero, quero que sobreviva. - Então dança e me acompanha! - Mas sem música? - Ora, Benedito, imagina! A mente também é língua. - Como assim, Joaquim, ninguém poderá ouvir. - Mas verás, que a verdade da língua foi o primeiro gesto quando esculpiu o ar, dança! - Danço, danço por que assim eu te acompanho, danço até um tango, só para ficar mais próximo da origem de tua língua, a argentina. -  Mentira, você sabe que minha língua não é a argentina, ainda que haja muitos vernáculos do espanhol na minha língua, o que você quer é se enfiar no meio de minhas pernas, a tragédia, sem sambar na avenida. - Sambar eu não sambo, e não é por que sou preto e quero tua luz de branco que lhe acompanho com este terrível tango. -  Eu te dou minha luz, eu te dou meu canto, o fado. - O fado? - Tem que seguir teu destino pouco solitário, pois se acreditas no diálogo, ai de mim. - Ai de mim, português, não vá Joaquim. - Sinto, sinto muito, mas tenho que partir. - Fica, não morras, resista. - Já resisti, minha luz está em ti como tua luz está em mim, tenho a alma negra, agora preta e civilizada, por tanto que contigo aprendi. - Bem, mas se é assim, eu sou iluminado, como um preto de alma branca, também civilizado? - Por caridade respondo vossa pergunta: és civilizado, mas não como um preto forçado pela língua que não é tua, pela cultura, do presente, futuro e passado, não, também não, és apenas uma estrela, negra, que com tua inteligência, absorve tudo de quem passa, todos somos assim, é a língua viva que conduz e também é conduzida num plano sem fim. - Ai de mim. - Ai de mim, preto, eu morro e você tem que seguir. - Português, não! Foi assim que vi muitos dialetos morrerem em mim. - Tudo morre e não há por que haver guerra, morro, morri. fim.

Português, vai ser assim, então por que a gente fala, por que eu aprendi, se o diálogo pela palavra não é o suficiente para unir o mar, deixar unica a palavra, de muitas mãos, justas, civilizadas, para erguer uma só nação, uma só carta. Já são 800 mil pretos, fora os brancos e vermelhos que confundem suas línguas nesta babel bíblica que só atira o arco, a flecha e a bala... Língua portuguesa, por que a gente escreve e fala, melhor é ser um ponto, seguido de outro, e outro, para ser reticências como fim... a verdade da linguagem é que agora a língua de um, nos faz dois, e é assim. E eu só sei que agora colorido em preto e branco, por caridade eu tenho que seguir, transformando, cai a luz em penumbra e fecha o pano.

-Ressuscitei!Ressuscitei! Ressuscitei! - Vale-me deus, cruz-credo, Ave-Maria! -Aha! Na hora do aperto o baianinho macumbeiro vira católico no jeito. - Meu deus, você não morreu? -  Enganei você com meu sono de Morfeu. - Cabra, você estava dormindo! -Fingindo, como todo poeta fingidor, fingi tão completamente que fingi a dor que deveras sente. - Pessoa, do mal, enganou esse pobre coração mortal. -Mentira!Você sabia que a morte é a ausência da vida. -Então, português, você se ausentou! -Minha flor, estrela guia, vou lhe contar minha filosofia, de poesia pessimista, tudo é representação, não há realidade na vida, só vontade de potência onde o nada é o protagonista, viva! -Viva, pra quê se você em nada acredita? -Acredito que a verdade da linguagem é a mentira! -Mentira, então fingiu tão bem que todo mundo copia. -Copias, poesia repetida, -Afinal, português no que você acredita? - Vou explicar, a república existe no ar, como frases de efeito de uma retórica sofista, para perder ou para ganhar, tudo é jogo de linguagem e não existe caridade em nenhum centro espírita. - Não me diga!? -E digo mais, neguinho platônico, de nada adianta conversar num centro espírita, pois a única realidade da caverna é a sombra! - Pombas! Pombas-giras! - E a luz... -E a luz, diga. - Não existe, a unica realidade é um coco seco no canto da cozinha. - Creio em deus pai, você bebeu tua urina. -Sim, é maluco, como aquele teatro do absurdo. -Desconjuro. -Juro, é boa linguagem, fiquei rico, só cobrando isso. -Você é Judeu? - Que preconceito, sou cristão, pois a novidade do judaísmo é o cristianismo. -Não seria Jesus Cristo. - Ou o bandido! -Que isso!? -O bandido ser perdoado, essa é a novidade do cristianismo que eu lhe trago: eu te perdoo. -Eu não sou ladrão, e se toda linguagem é só representação, você representa o seu perdão, não é sincero. -Sou honesto. -Cheio de graça. -Ser honesto basta.

-Bem, português, pois se ser honesto basta, e você realmente não acredita em nada, siga tua ordem matemática. -Que ordem é essa? - Assuma o zero! -  Eu não sou um zero! - O zero da matemática, afinal você não acredita em nada. - Eu acredito sim, eu sou o um. Um deus único e sem fim. - Então me conte da onde veio o um na linguagem matemática? - Não sei, veio do zero. - Não pode ser, o um não veio do zero por que o zero não é nada, está vendo sua linguagem é mentirosa e abstrata. - Eu vim do céu e tenho a palavra, logo me transformo em algarismo e faço chover prata. - Então faça, por que logo, logo, de tão seco vamos morrer neste sertão sem nada. - Chove, chuva de prata, que logo me cai do céu uma argentina paraguaia. - Que geografia é essa, uma argentina paraguaia? - Com licença, eu tenho a minha própria linguagem geográfica: toca guarânia e me traga uma cigana de saia rodada. - Lá vem você com a música dizendo que tem a palavra.- Música é linguagem matemática: vem cigana, vem cigana. - Ai de mim português, o que foi que você fez, eu estou girando e minhas mãos no céu estão bailando! -Vem cigana, vem cigana! - Português, para, com essa linguagem mágica! - Vem cigana, vem, que a solidão deste sertão ainda me mata, vem que eu te dou um rio de prata. - Que guapo, que macho, muchacho. - Linda cigana paraguaia. - Estou apaixonada, tome esse punhal de língua prateada. - Que lindo! Gracias - É para cortar palavras. - Obrigado, vou cortar a solidão como vocábulo da minha oração! Agora vá! - Fui; português, o que foi que ocorreu desta vez? -Eu sabia que você guardava um punhal de prata. - Mas é claro, eu caço com essa faca, corto o mandacaru para beber água.

Mentira, você guarda está língua afiada para cortar o princípio da palavra.  -Oh diabo, como deus e o diabo na terra do sol, você enfia uma ideia na cabeça e uma câmera na mão e quer fazer um filme premiado, olha, eu não estou interessado na originalidade do pecado! -  Fala, ou eu te corto em pedaços. - Pode cortar, mas só vai fazer do negrinho aqui um punhado. - Punhado de quê? - De átomos. - Não sou Demócrito, eu não estou interessado. - Então o que realmente quer saber? - No início, princípio dos fatos. - No princípio era o verbo. - E antes do verbo? - A luz, por certo. - E antes da luz? - A escuridão, como um negro carvão. - Carbono, é você! - Você o quê? - Tua física, explodiu em universais! - Oh, deus, português, minha língua nata não explodiu em nada, apenas fala - Não sei, estrela negra, tua língua se esconde e não me revela nada, então me diga! - Mas é você que me acusa, é você que deveria revelar a palavra. - Pois é, e eu não sei. - Eu também não sei, português, talvez a língua seja só um pouco mais de um simples traço. - Simples traço do quê? - De um ponto, dois pontos, sei lá, dois traços, dois pontos. - Dois pontos, dois traços, dois pontos, de quê? - De uma linguagem que se crê? - Mas o que significa? - Interrogação, código morse patrão! - mas isso é linguagem de guerra. - Então, não é essa a origem da tua questão, português orixá, tupinambá! - Eu não como gente! - Mas a tua língua come. - Não é a língua, são os ouvidos, eu ouço e falo. - E reconstrói a ordem do tempo e do espaço. - Eu não estou construindo nada, você que desconstrói quando fala, inventa gírias, negrinho de periferia e se distancia da correta gramática. - Então é este o seu problema comigo, é esta a questão? - Sim, tua crítica e interrogação! - Tudo bem, mas eu nunca te perguntei nada. - Uai, você não pergunta e também não responde quando fala. - Por que não estou interessado, nem na verdade, nem na linguagem, nem no verbo, ou no espaço, por que a unica coisa que existe é o meu buraco. - Então volte para o seu lugar e fique de boca fechada, calado. - Volto, como me encontrou no início, quieto e sem sentido ... - É isso, o silêncio, o silêncio é o princípio da verdade de qualquer linguagem. - Satisfeito, posso agora terminar a nossa história. - Pode, mas só uma coisa a mais... -E o que seria? - No silêncio, do publico que nos observa, no silêncio da plateia, qual é a consciência que existe lá?

-Ah, português, olhe para as tuas mãos, e se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina "da língua" e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer / leia as tuas mãos, elas são o teu vinho e o teu pão. - Que é negro, quer me dar sermão, é Antônio, é Vieira, eu leio as minhas mãos e vejo as veredas das sede e da fome de um homem do sertão -Sim, e talvez seja esta a sua consagração. -Negro, é o fim da questão, ler e escrever para dividir a minha língua é dividir a minha imaginação! -Sim, português, é o fim da questão. -É o fim da questão, você tem razão, eu cheguei para uma conclusão, então apague a luz e feche o pano, eu leio e escrevo por que literatura é mesmo a ciência do livro da minha imaginação!

-E agora português, o que vai fazer? - Dançar e cantar para crer - Crer em quê? - Na língua: Yanomami, Pataxó, Tupinambá, Guarani... - Que língua é essa? - É o tronco de uma língua esquecida, são muitos os galhos da linguagem indígena. - Mentira, você está inventando. - Eu estou cantando e dançando para reinventar a língua. - Não pode fazer isso. - Por que não a língua é viva! - Então eu também vou inventar uma canção e dançar numa nova mentira. - Não minta, cria, e se sua língua for bonita... - Acaba que somos aplaudidos. - E enquanto a luz se apaga... - A gente canta e dança nossa língua inventada:

 "-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------"

- Cantando e dançando, apaga a luz e fecha o pano.


FIM                                

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