O despertar de Luzia / Júlio Paiva 2017


Acordei, e vejo que se minha alma não evapora-se em sonhos de vento e calcário, e se minha alma nunca sedimenta-se os anos idos que findo solitária, jamais seria descoberta,  porém não sou mulher invisível, e por isso meu registro em pedra e carvão, eterna solidão, que eu não admito, assim risco de vermelho carmim, outros homens depois de mim, assim, caçando veados, e preguiças gigantes que eu não caço, e sem sinal de diálogo, choro no silêncio das catedrais de carbono, com água de cortar minha rocha e fazer lágrimas de espeleotemas tristes, dou forma, que ironia, pois sei que a água deste rio claro que me mantém viva é a que me rouba, passo a passo, levando meus pedaços, ano após ano, eu sou fragmentada pela chuva que cai da terra, vertendo tudo o que penso e não revelo, em nenhuma oração, jamais saberão que fui eu que fui a primeira, mas se eu não escondo essa urna, este pedaço de fêmur, este crânio zombeteiro, que zomba de mim, querendo ser o primeiro. por quê? Por que reaparece nesta fenda espalhada sem nada a dizer. Então diga, pois para cada palavra eu colo teus pedaços, uma costela e um braço, retiro toda a areia de seus ossos entrelaçados, esquecidos, retiro todo o arenito de tua alma de lagoa santa e te deixo limpo. Eu te limpo, até polir seu caráter de granito, seja de quartzo, ou seja de vidro, eu te dou a esperança, eu acordo você.  - O quê? Que luz é essa? - É a luz sobre você, a esperança. - Brilha mais do que a pedra polida de minha lança. - Calma, não lhe fará mal, pelo contrário é ela que te mantém. - Clara, agora acordada, eu dormi por mais de cem. - Dormiu por muito tempo, Luzia. - Presa nesta fenda. - Como um túmulo de tempo lento, presa, permaneceu. - O sonho de Morfeu? -Sim, creio eu. - E por que me desperta? -Não fui eu, foi o acaso, um tempo de passo largo. - Molhado, é chuva, luz de água. - Que vigorosamente lhe levava. - Para onde? - Não sei, ninguém sabe, por onde a esperança leva o teu cárcere. - Estranho, essa luz, cabe em mim, mas não cabe em ti. - Eu prefiro o escuro, da escuridão. - E por que não se apresenta? - Um dia me acharão. - Também morres aqui, preso? - Sim, mas por decisão, já caminhei com pressa por um longo tempo e aprendi a me tornar lento. - Mas lento, não tem pressa para comer? - Eu perdi a memória e não sinto fome. - Mas e a sede? - É só beber. - Eu sei, mas e a sede de saber, por onde o rio caminha, é só segui-lo, ele deve chegar no mar. - O mar está lá, é essa luz que lhe cai em cima. - Não pode ser, não se dá para alcançar. e não há peixes, como eu irei pescar. - Coma aranhas. - Eu não como aranhas. - Então vai passar fome. - Eu sei caçar e sei para onde o rio corre. - O rio corre para lugar nenhum, Luzia, fico triste por ter que te contar. - Não pode ser, o rio se move. - Todo rio se move para a terra, a terra engoli a água dela, é um sumidouro. - Devemos escavar. - Escavar a morfologia da rocha, e criar um túnel e descer para onde, no preto escuro tempo? - Preto ou escuro saberemos para onde vai. - Você não sabe para onde vai.- Eu sei, para o meu futuro. - Que futuro?  - O fogo! - Que fogo, a luz em cima de ti não basta? - Não basta, ela não iluminará o túnel. - Pare de bater estas pedras de tolo, pois se fizeres fogo, queimará a esperança. - Ora fique com o emaranhamento de tuas aranhas, minha fome é minha dança. - Dança, mas eu só lhe permito no escuro! - Não fico muda, danço e faço fogo. - Tola, assim você vai enxergar! - Clara dança, eu danço de fogo para iluminar. - Não, fogo é perigoso, acaba por te acordar! - Mas o que é isso que meu fogo quer iluminar?! - São meus registros. - Vermelhos, geodésicos, geométricos, desenhados nas rochas do ar! - Eu não queria fazê-la enxergar, mas eu sou o primeiro. - O primeiro a despertar? - O rito, da arte do primitivo desenho, animais em branco, preto e vermelho.- E o homem? -Não está.  - Eu também quero desenhar.  - Não faça isso, as paredes de minha alma não tem mais lugar. - Quero homens em volta de uma árvore. - Para colher, vão saber, que o homem colhe. - Colheremos eu e você. - Tola, eu já desenhei o fruto. - Mas e a árvore? - Sou eu! Não vês, que eu fico aqui parado até enraizar bebendo água calcária até petrificar, quando me acharem serei mais pesado que o ar. - E para quê? - Para ser só eu, e somente eu, ser! - Assim, ninguém irá acreditar em você, uma árvore que não dará mais frutos, cinza, caída, desvalida, entorpecida por uma mentira de ser o primeiro eu! - Eu sou o primeiro que se sucedeu, veja, a ponte, estreita, de um caminho que minha tribo percorreu, eramos negros, esguios e altos etíopes fugindo da fome, logo no caminhar do oriente deitamos nas índias dos chineses, mongo leses, que de tão bela era a gelada sibéria, a ponte estreita do Alasca para as Américas se ofereceu, partimos e atravessamos, desenhada ali até chegar aqui, mudamos tanto que ninguém mais nos reconheceu, mas agora minha tribo, sou eu! - E o mar? - Que mar, era tudo ponte de terra e água, atrás da caça que nos levava para algum lugar, presos por mais de dez mil anos de uma ilha congelada onde ninguém se comunicava, ninguém se falava, até que quando recuou o mar, passamos e chegamos aqui onde não havia mais nada, só deserto seco sem água. - Mas e o rio que cai, para onde vai, daqui de cima, não está seco, cai e alimenta em algum outro lugar. - Já disse, isso é só luz e água e não existe outra saída deste lugar, você nem sabe navegar, beba, você há de se conformar. - Tudo bem, eu bebo, aceito e cresço. - O que está fazendo? - Raiz, e estou crescendo. - Não, não se lembre, não se vá! - Passo pelo buraco do céu de tua água, pedra furada que irá me orientar. - Luzia, não vá! Você é meu mistério, minha Itaquatiara, minha pedra do Ingá.- Agora eu vejo, leio a terra seca que me lançou ao mar. - Isso é só a África! - Entre os continentes, seja o pacífico ou o atlântico mar, agora eu me lembro, eu sou a primeira do primeiro. - Nunca, nunca será! - Mais de trinta mil anos diz a pedra entrecortada, pedra lascada, tecnologia que ainda hão de encontrar. Eu atravessei o mar!? Americano, eu sei navegar!? - Estou calcificando Luzia! - E eu estou escrevendo com rios de cavalos de narizes estranhos, frutos de árvores de outros humanos, tatus e preguiças gigantes com tigres dentes de sabre que servem para o meu colar, vou me enfeitar e contar a eles que nos meus sonhos eu soube navegar, pois um dia felizes irão nos encontrar, você como árvore de pedra e eu como tribo do tempo de minha pedra polida na termo-luminescência do ar, eu sou rio de Luzia, rio que sai da caverna como Luzia do livro do meu despertar; eu sou Luzia, o sol que ilumina! - E eu sou árvore de pedra que calado só por que um dia tive um namorado, um dia terão que me aceitar: eu cientista brasileiro fui o primeiro a te despertar.                  

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